sexta-feira, 3 de abril de 2009

'bout salie

Sobre Salie

Bem se lembrava; era impossível que esquecesse. Ainda mais se barbeando, olhando a si mesmo de perto, no espelho. A cicatriz que n’alma suprimia cintilava carmim em seus olhos e a navalha alisava sua pele. Mas a cada cingir da lâmina mais uma ferida lhe era aberta: não na carne, no vazio de seu interior.
Os pensamentos corriam-lhe a mente: seria mais fácil se tudo acabasse logo. A lentidão dessa fugaz vida somente o fazia mais e mais ansioso; aos poucos, entorpecido. Amava Salie.
Mas não o puro amor, nem a vibrante paixão. Queria-a ao seu lado, custasse sua própria vida – que tinha ele pouco apreço – custasse a de outros. Era demasiado profano? Amar? Querê-la para si? Destituir-se-ía desse amor o mais rápido possível. Refletiu na decisão, se correta ou inteiramente errada, enquanto limpava sua navalha, preparando outro corte, alisando na toalha o pouco da espuma que retirara.
Absorto, assustara-se profundamente quando brotou de seu rosto uma viela rubra, escorrendo-lhe de suas hemáceas; viu-se tremer. Agora teve, pois, medo de sucumbir? Era Salie. Se havia algo nesta caótica existência que o prendesse – não houvesse nada! – mas Salie brilhava. E esse estalo, junto do desejo de ver se livre daquele tão esperado sentimento, eram como marteladas em seus joelhos... Acomodou sua navalha na pia e recostara-se, logo, sentou-se.
Lembrara de um amigo, que algum dia lhe disse, enquanto andavam, que aquela senhorita não devia se tornar o desejo mor de suas ambições; e que se apaixonando ele teria problemas. Mesmo o temperamento de Salie sendo um tanto difícil, isso não diminuía suas qualidades. Aliás, acho que somente um ato execrável, sujo, asqueroso, retiraria algum mérito dela.
Fosse somente linda, e como era linda! Mas era lúcida como a lua nova, bela como a lua crescente, cintilante como a lua cheia e frígida como a minguante. A eloqüência com que falava ganhava olhares, e ouvidos. Atentos às suas palavras, os sorrisos esboçados por dentre os argumentos convenciam. Aliás, cada sorriso uma jóia, ou o melhor doce da melhor doçaria. Quem tocava àqueles lábios logo se via implorando, suplicando que acontecesse de novo. Não era uma deusa, pois não havia nela a leveza do etéreo, mas também não lhe havia o peso humano. Ela era mesmo... Quase incompreensível.
Ele sentia, ou melhor, doía-se por não entender os acontecimentos que sucederam na manhã daquele dia. Perdera sua melhor oportunidade? Mas ela necessitava de si mesma, não mais dele. Seria tão perfeita ao ponto de completar-se sozinha? Sentia-se ele tão completo ao lado dela. Era recíproco? Sim era, mas ele nem imaginava. Salie era muito, mas muito esperta. E dominava seus próprios atos, não demonstrando exatamente, mas insinuando, sugerindo, deliciando-se com o jogo.
Mas Salie precisava respirar. Precisava tratar-se. Precisava do ar puro da solidão, não do transtornado ar rarefeito do amor. Essa poluição por vezes a incomodava. Não adiantava, ele tinha de recompor-se, superar-se. Ela tinha de respirar.
Recompôs-se, e voltou ao pedante ofício, barbeando-se, lamentando-se, temendo por nunca mais tê-la nos braços.

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